A actuação da administração pública é regulada por vários princípios, entre os quais o princípio da legalidade, segundo o qual, em termos muito genéricos, a actuação da administração é condicionada por prévias disposições legais. Porém, ente condicionamento não assume, na maioria das vezes, uma densidade normativa que elimine por completo a liberdade de decisão no âmbito de um procedimento administrativo. Esta realidade reconduz-se à margem de livre decisão administrativa. Esta pode assumir duas formas: discricionariedade ou margem de livre apreciação. A primeira decorre da abertura da estatuição da norma legal por meio do recurso a conceitos permissivos, enquanto que a segunda resulta da abertura da previsão da norma legal, por meio da utilização de conceitos indeterminados. Quando o legislador adopta estas soluções, cria um espaço reservado à actuação da administração, ao entender que a decisão puramente administrativa revelar-se-á mais adequada do que se verificar uma maior intervenção legislativa.
Sendo assim, esta situação tem implicações ao nível do contencioso administrativo, pois não podem os tribunais emitir decisões cujo conteúdo se reconduza a matérias que estão abrangidas pela margem de livre decisão da administração. Todavia, isto não significa que a intervenção dos tribunais esteja totalmente excluída nesses casos. Pelo contrário, essa intervenção é necessária, na medida em que a margem de livre decisão nunca é totalmente livre, havendo limites decorrentes da ordem jurídica que se lhe impõe necessariamente. Tais limites reconduzem-se aos elementos vinculados, fixados obrigatoriamente por lei, e que são a competência e o fim, acrescendo ainda princípios gerais da administração como os enunciados no artigo 266.º, n.º2, da Constituição da República Portuguesa. A este propósito, o Professor Doutor Vasco Pereira da Silva alerta para a necessidade de se ultrapassar o carácter absoluto que se tem atribuído à margem de livre decisão administrativa, acompanhado pela tendências dos tribunais se furtarem à apreciação das decisões da administração, criando-se uma área onde o controlo jurisdicional está ausente.
Na verdade, se a existência de uma margem de livre decisão é louvável, pois permite uma maior adequação da decisão ao caso concreto, permitindo a tomada em conta de circunstâncias particulares, não deixa esta de criar também perigos como a falta de segurança jurídica ou a criação de desigualdades, daí que a intervenção jurisdicional tenha de ser assegurada.
O controlo do exercício da margem de livre decisão da administração pode ocorrer a propósito de várias modalidades da acção administrativa. O caso mais emblemático será o da condenação à prática do acto devido, prevista nos artigos 66.º e seguintes do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), enquadrando-se no âmbito da acção administrativa especial. A questão em torno da margem de livre decisão, em particular do exercício do poder discricionário, poderia determinar que ao tribunal apenas coubesse condenar a administração na prática do acto legalmente devido, mas assim não acontece, como esclarece o próprio artigo 71.º, n.º2, CPTA. Explicando melhor, embora a administração possa gozar de alguma liberdade na conformação do conteúdo do acto, este será sempre sindicável até certo ponto, sendo que o tribunal deve fixar os limites impostos pelos vectores que controlam a margem de livre decisão, perante o caso concreto.
Todavia, a cautela dos tribunais quando em causa a margem de livre decisão da administração é comum e justifica-se fortemente pelo facto de uma interferência excessiva dos tribunais em tal âmbito poder reconduzir-se a uma violação do princípio da separação de poderes, princípio fundamental no Estado de Direito.
A exemplificar estas cautelas encontram-se dois acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo (STA), um dos quais muito recente, que dão prosseguimento a jurisprudência constante relativa à actuação dos tribunais administrativos em matéria de avaliação e classificação. O primeiro (Ac. de 11.05.2005, processo n.º 01618/03), trata-se de um pedido de anulação de um acto administrativo praticado pelo Conselho Pedagógico do Centro de Estudos Judiciários (CEJ) que exclui a recorrente, que frequentava o CEJ, por se entender que a sua avaliação não a permitia vir a exercer as funções de magistrada. Neste acórdão, está estão em causa não um pedido de condenação à prática do acto devido, mas a impugnação de acto administrativo (artigos 50.º e seguintes do CPTA), também incluído na acção administrativa especial, o que demonstra que o problema da intervenção dos tribunais perante a margem de livre decisão da administração se pode colocar a propósito de diferentes pedidos. O último (Ac. de 14.04.2011, processo n.º 0567/09) debruça-se sobre um pedido de anulação de uma deliberação do Conselho Superior do Ministério Público que procede à atribuição da nota "Suficiente" à recorrente, Procuradora Adjunta, com a condenação do demandado à atribuição da nota "Bom". Em ambos os casos, o STA não concedeu provimento aos recursos e, não querendo significar que nestes casos concretos assim não se justificasse, tanto que até são vários os elementos de facto enunciados no sentido de justificar a correcta decisão da administração, não se pode deixar de notar que, em ambas as decisões, o Tribunal também se baseia em considerações relativas à margem de livre apreciação da administração. Nomeadamente, no Ac. de 2005, o STA recorda a sua "jurisprudência constante e pacífica (...) que consagra que em matéria de avaliação e classificação, dada a margem de livre apreciação, só em casos de erro manifesto ou de critérios claramente desajustados é que pode o tribunal sindicar os juízos manifestados pela Administração". Esta formulação pode ser admissível, porém, sendo a sua aplicação levada ao extremo ou feita de modo puramente literal, perante o seu carácter muito restritivo, embora fazendo um bom trabalho para tutela do princípio da separação de poderes, pode, como reverso da moeda, permitir ao tribunal que se furte à devida apreciação do acto. Isto porque a concretização do que seja "erro manifesto ou grosseiro", se não bem aplicada, corre o risco de desembocar na exclusão do controlo jurisdicional de casos que a ele deveriam estar submetido. Por exemplo, não é pelo facto de uma determinada avaliação estar desenvolvidamente fundamentada em vários relatórios, pelo que se poderia argumentar que o potencial erro não seria manifesto, que deve ser excluída pelo tribunal a consideração do princípio da igualdade, atendendo a procedimentos de avaliação em casos semelhantes. Além disso, a enunciação de afirmações como no referido Ac. de 2011 de que "Tudo dependerá, afinal, dos olhos de quem vê" e os olhos a prevalecer seriam os da administração denotam uma visão perigosamente alargada daquilo que será a "liberdade da margem de livre decisão da administração", isto é, a área onde o tribunal não poderá intervir e que não deverá ir para além de opções de mérito.
Concluindo, o adequado equilíbrio entre o principio da separação de poderes e o princípio da tutela judicial plena e efectiva, controlando-se os ímpetos usurpadores do primeiro, assim como o exercício pleno em toda a sua dimensão do poder judicial pelos tribunais, dependerão do modo como os tribunais procederem nos casos concretos com os quais se depararem, como entende o Professor Doutor Vasco Pereira da Silva particularmente a propósito da concretização de todo o potencial das acções de condenação à prática do acto devido: "O modo como a jurisprudência fizer uso destes novos poderes (...) afigura-se-me ser uma questão decisiva, uma verdadeira "prova-dos-nove" para apreciar a efectividade da reforma do Contencioso Administrativo"(1).
Sara Lemos de Meneses
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(1) Vasco Pereira da Silva, «O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise», Almedina, Coimbra, 2009, páginas 394 e 395.
Bibliografia:
SOUSA, Marcelo Rebelo de / MATOS, André Salgado de, Direito Administrativo Geral - Introdução e Princípios Fundamentais, Tomo I, Dom Quixote, Lisboa, 2006.
SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise - Ensaio sobre as acções no novo processo administrativo, Almedina, Coimbra, 2009.
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