O tema da legitimidade em processo administrativo é um dos temas mais actuais e que ganha a maior importância com a recente evolução verificada nas relações jurídicas administrativas. Sendo a legitimidade definida, como se pode ler no artigo 9º do Código de Processo dos Tribunais Administrativos (CPTA), em função da participação ou não do autor na relação material controvertida, pretendemos com este trabalho reflectir um pouco sobre a evolução recente dessa mesma relação material controvertida, e os problemas que essa evolução tem colocado em termos de legitimidade activa e passiva do processo administrativo.
De facto, cada vez mais a relação jurídica administrativa deixou de ser uma relação bilateral (Administração/Particular), para passar a ser uma relação polarizada ou multilateral, afectando não só os sujeitos da relação jurídica vertical (Administração/particular), mas também os sujeitos das relações jurídicas horizontais, conexas com essa mesma relação vertical (Administração/outros órgãos da Administração; Particulares/ outros particulares afectados, etc.).
A legitimidade enquanto pressuposto processual, tem como razão de ser a preocupação de trazer a juízo os titulares da relação jurídica controvertida e é a concepção que se tenha dessa mesma relação jurídica que vai determinar o modo como os terceiros possam ou não participar nela. Num primeiro momento, em que a Administração mantinha com os particulares uma relação marcada pela autoridade e consequente subjugação dos administrados a essa mesma posição de supremacia, e onde não eram reconhecidos direitos aos particulares em face da Administração, a relação jurídica administrativa não deixava margem para mais sujeitos que não fossem a Administração e o sujeito particular directamente lesado na sua esfera jurídica por alguma actuação da Administração. Felizmente, a evolução constitucional operada colocou os direitos fundamentais num patamar de irreversibilidade onde já não são defensáveis posições que neguem a existência de direitos dos administrados face à Administração, sob pena de se atentar contra a dignidade da pessoa humana.
No entanto, isso não impede que haja várias posições sobre o tipo de “poder” que o particular pode invocar junto da Administração. A discussão não é assim tão simples e tem raízes mais profundas, na própria concepção de direito fundamental de cada autor; não queremos entrar de forma tão densa na discussão mas vamos procurar trazê-la para o que aqui nos importa, sintetizando o máximo possível a sua explicação. Na nossa doutrina a distinção entre direitos fundamentais e figuras afins tem encontrado terreno bastante fértil, para dar apenas uma ideia das opiniões dominantes podemos dizer que hoje em dia, quase todos os autores, fazem a distinção entre direitos subjectivos e interesses legítimos. Tal orientação dominante é perfeitamente compreensível face: 1º : ao próprio texto constitucional, que no artigo 268º nº4 garante aos administrados a tutela dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, 2º : ao artigo 55º nº 1 a) do CPTA, e por último o próprio artigo 57º do CPTA que nos vai ser especialmente útil no desenvolvimento do tema, que também usa as duas expressões em uníssono.
Assim, encontramos autores como FREITAS DO AMARAL, que explica a distinção com base no facto de os direitos subjectivos resultarem de forma imediata da lei, enquanto que nos interesses legítimos o poder de vantagem do individuo é atribuído apenas de forma reflexa;
RUI MACHETE, por sua vez explica a diferença dizendo que no caso dos direitos subjectivos a sua efectivação não está dependente de nenhuma actuação administrativa, enquanto que nos interesses legítimos a sua efectivação estaria dependente do exercício do poder administrativo. Revolucionária e inovadora nos parece ser a posição de VASCO PEREIRA DA SILVA em relação a esta matéria, devemos confessar que, enquanto estudada na disciplina de Direitos Fundamentais, a sua teoria da norma de protecção nos fazia relutar um pouco pelo excesso de subjectivismo que poderia estar contido na interpretação do âmbito de aplicação da norma, uma vez aplicada ao processo administrativo ela parece fazer todo o sentido, uma vez que cumpre na plenitude a função de bálsamo ou terapia para os traumas de infância de que a disciplina padece ajudando-a a tornar-se um adulto saudável. Ora vejamos: o particular será titular de um direito subjectivo face à Administração, sempre da norma jurídica resulte um direito, uma protecção do seu interesse, uma vantagem para o particular ou um benefício de facto decorrente de um direito fundamental.
Quanto a esta última situação que VASCO PEREIRA DA SILVA entende ainda estar abrangida pelo conceito de direito subjectivo, insurge-se RUI MACHETE dizendo que esses interesses de facto só podem ser tutelados uma vez subjectivados através da participação dos seus titulares no procedimento administrativo, e que para tal contribui o conteúdo do artigo 53º do Código de Procedimento Administrativo, que “abre” o procedimento a terceiros não titulares de direitos subjectivos. Cabe dizer aqui que tal não é uma tutela suficiente nem satisfatória, uma vez que nem todas as situações susceptíveis e serem apresentadas em juízo têm forçosamente atrás de si um procedimento administrativo.
Concluindo, podemos dizer que no nosso ordenamento houve uma franca evolução no sentido de reconhecer o carácter multilateral das relações jurídicas administrativas, e que hoje em dia esse carácter multilateral está espelhado na previsão da legitimidade passiva de cada acção como resulta dos artigos: 10º n1, 57º e 68º nº2 do CPTA. E na forma de legitimidade activa: artigo 9º nº 2, 55º nº1 f) e 68º nº1 f) do mesmo diploma. Apesar desta previsão específica, devemos fazer uso da teoria da protecção da norma, para que os terceiros deixem de ser terceiros e passem a ter um papel de parte principal na acção.
- VASCO PEREIRA DA SILVA, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Almedina, 2009
-FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, Vol. II, , 8.ª edição, Setembro, 2008
- Sobre a legitimidade dos particulares nas acções administrativas especiais", RUI MACHETE in "Estudos em homenagem ao Prof. Dr. Sérvulo Correia. FDL, 2010
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