O contencioso administrativo nasce com a Revolução Francesa, esta impulsionada directamente e decisivamente pela obra De L’Éspirit des Lois de 1748 de Montesquieu espelhava a necessidade de garantir a todos os homens a liberdade individual, ou seja, para o mesmo autor liberdade é o direito de fazer tudo que as leis permitem e o direito de não fazer nada que as leis não imponham. Contudo, no limite o Governo deve assegurar e respeitar a liberdade dos indivíduos, sendo necessário, consequentemente, que o poder político esteja limitado pelo Direito e que esteja repartido entre diferentes órgãos do Estado. Ou seja, e citando o seu Livro XI, Capítulo IV da referida obra em supra, “A liberdade política só se encontra nos governos moderados (…) quando não se abusa do poder (…) para que não possa abusar do poder, é necessário que, pela disposição das coisas o poder pare o poder. Assim, uma Constituição poderá ser tal que ninguém seja obrigado a fazer coisas a que a lei o não obrigue, ou a deixar de fazer aquelas que a lei lhe consinta.”
Antes da revolução Francesa os tribunais comuns resolviam conflitos que emanavam da actividade administrativa transformando-se, assim, uma barreira à criação de uma máquina administrativa estadual isenta mas não à excessiva defesa de privilégios que se formavam, já que estes detinham competência jurisdicional e administrativa. Com a Revolução Francesa, há a sujeição ao Governo de uma Administração centralizada onde não há intromissões de outros poderes, ou seja, inspirada em Montesquieu que propõe a divisão poder político do Estado em três: “poder legislativo, poder executivo das coisas que dependem do direito público e do poder executivo daquelas que dependem do direito civil” (ou poder judicial).
Contudo, esta administração pouco mudou em relação à existente a partir de 1789. Historicamente, a máxima de “julgar a Administração é ainda julgar” toma inicio em 1641 quando Luís XIII assinou o édito de Saint-Germain onde interditava “os Parlamentos de conhecer casos relativos ao Estado, à sua Administração e ao seu governo”, impedindo o parlamento de tomar oposição ao centralismo régio mas que não impedido de após a Revolução de agravar a existência de uma administração privilegiada onde os juízes estavam impedidos de perturbar de modo algum as operações da Administração.
Esta confusão de esferas designa-se pelo ciclo do “Administrador-Juiz”, ao qual o Prof. Vasco Pereira da Silva designa por o período do Pecado Original, onde existe uma perturbação entre os limites do poder administrativo e o poder judicial, sendo a administração o juiz e o juiz seria administrador. Este período contém três fases essenciais:
- Primeira Fase – 1789 a 1799 – o julgamento de litígios cabia ao órgão da administração
- Segunda Fase – 1799 a 1872 – cria-se o Conselho de Estado que tinha por competência julgar a Administração (entramos na fase em que há um sistema de justiça reservada)
- Terceira Fase – a partir de 1872 – surge o sistema da justiça delegada onde as decisões do Conselho de Estado tornam-se definitivas e não necessitavam de homologação (que era necessário na segunda fase). Neste sistema o meio administrativo é um meio jurisdicionalizado que tenta conciliar as exigências da Administração com a garantia dos direitos individuais. Além do mais, o órgão fiscalizador ganha uma maior autonomia pela delegação de poderes decisórios de julgamento no Conselho de Estado, contudo não deixa de as suas decisões não deixaram de ser tidas em conta como “recursos de apelação” das decisões dos ministros. Por isso, o ministro será uma espécie de “juiz de primeira instância” e o órgão da administração consultivo funciona como um tribunal de recurso, o que permite, agora, reconhecer alguns débeis indícios de separação entre o julgar e o administrar.
Quanto ao segundo período, designada pelo Prof. Vasco Pereira da Silva como o Baptismo – jurisdicionalização do Contencioso Administrativo na sua máxima força -, caracteriza-se por duas mudanças: primeiro cria-se o direito administrativo (não que já não existisse ressalve-se…) e segundo decorre da modificação de uma instituição que protegia a Administração do controlo dos tribunais para um verdadeiro tribunal garantístico dos direitos dos particulares. Ao assistirmos a passagem do Estado Liberal para o Estado Social opera a sujeição do Estado ao Direito, primando pela característica de prestadora para a satisfação de necessidades públicas e actuando pela forma de acto administrativo.
Em relação ao terceiro período, ao qual o Prof. Vasco Pereira da Silva nomeia como a fase da Confirmação ou Crisma, proclama-se a expressa consagração da natureza dos tribunais comuns e tribunais administrativos reafirmando-se a natureza jurisdicional do Contencioso Administrativo, afirmação plena e efectiva dos direitos dos particulares (vertente subjectiva do contencioso) e onde o juiz goza de independência e plenos poderes face à Administração, pelo que o Direito Administrativo deixa de ser exclusivamente da administração para se tornar sujeito a uma relação jurídica.
A frase que cabe particularmente analisar (“Julgar a Administração é ainda administrar”) cabe particular relevância na época do Estado Liberal dos séculos XVIII e XIX onde era proibido aos tribunais comuns julgar a administração pela susceptibilidade de violação do princípio da separação de poderes.
Contudo, este principio levado na sua extrema ratio pela letra da lei implicou a separação artificial, uma concepção inflexível e uma tentativa de ocultar a distinção entre a administração e a Justiça (baseados em dois princípios destacados por Montesquieu), já que é a lei apenas que garante os direitos dos particulares, sendo através dela que o poder do povo à Administração apenas cabe executar não violando o Principio da Separação de poderes já que a jurisdição era o complemento da acção administrativa.
Além disso, a administração é julgadora de si própria apenas porque é submetida a um direito especial criando direitos privilegiados e porque no limite na relação com o particular prima pela sua ampla discricionariedade derivada da redução ao mínimo legislativo.
Por isso, naquela época o julgar a administração não será apenas administrar mas julgar tendo como mote o paradoxal principio da separação de poderes indiferenciado as funções de administrar e julgar numa lógica contraditória funcional entre juízes e agentes da administração.
Mas, e não esquecendo, que tal situação derivada de quatro factores: a concepção rígida do Estado e do Principio da Separação de Poderes, da reacção contra a actuação dos tribunais do Antigo Regime, a força do modelo do Conselho do Rei e a continuidade do funcionamento antes e depois de 1789 (diga-se: a continuidade das instituições do Estado absoluto e do Estado Liberal – independentemente a tentada reacção aos tribunais do Antigo Regime), o que proporcionou uma “isenção judicial da Administração”. Esta isenção baseada na proibição dos tribunais comuns de julgar a Administração e por isso esta continuava a produzir sentenças, em que o único meio de tutela dos particulares era a reclamação para o órgão que tinha proferido a referida decisão, proporciona uma viciosa e libertina confusão entre a Administração e Jurisdicionalização mas também e última análise um abuso no uso da ampla margem de discricionariedade quando se relacionava com os particulares (ressalve-se que Administração era agressiva e por isso pouco intervinha…).
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Pereira Silva, Vasco; O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise - Ensaio sobre as acções novo processo administrativo; 2ºEdição; Almedina
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