Preâmbulo:
O direito comparado ensina-nos que o controlo judicial de omissão normativa da Administração começou por ser recusado a pretexto de se tratar de actos de Governo, mas a pouco e pouco as ordens jurídicas enveredaram por um controlo cada vez mais rigoroso dessa omissão, visando salvaguardar os direitos dos cidadãos e evitar a subversão das fontes de direito por parte da Administração.
No direito Português, pelo menos desde a Constituição de 1933, nota-se uma preocupação da parte do legislador com o problema da omissão normativa da Administração e, por isso, na revisão constitucional de 1945 estabeleceu um prazo subsidiário de seis meses para se aprovar os regulamentos necessários à boa execução das leis.
Introdução:
A omissão regulamentar constitui uma das vertentes do problema mais vasto da omissão dos poderes públicos que assumiu grande importância no moderno Estado Social de Direito.
A passagem ao Estado Social e Pós – Social de Direito acarretou mudanças significativas na forma de entender os fins do Estado e a necessidade de intervenção dos poderes públicos tornou-se uma regra constante, a ponto de a abstenção poder ser considerada violadora da ordem objectiva e dos direitos fundamentais dos cidadãos.
A Constituição de 1976 não ignorou a problemática da omissão dos poderes públicos e, sendo esta uma Constituição instituidora de um Estado Social de Direito, abordou expressamente a omissão do poder legislativo, instituindo a declaração de inconstitucionalidade por omissão, por forma a que os poderes públicos possam cumprir as imposições constitucionais no respeitante à pratica de actos legislativos. O mesmo se dirá em relação à Administração em que se preocupou com a prática de actos administrativos legalmente devidos, veja-se o artigo 268.º, n.º4 da Constituição. No entanto, a Constituição manteve silêncio no concernente aos actos normativos da Administração.
A proposta de se introduzir na Justiça Portuguesa um meio processual destinado a fazer face às omissões normativas da Administração foi avançada por PAULO OTERO na discussão sobre o ante-projecto da reforma do contencioso administrativo, tendo como base a inconstitucionalidade por omissão. Daí que se perceba, de imediato, ao analisar esta norma, que ela se inspira no artigo 283.º da CRP (Inconstitucionalidade por omissão).
Os preceitos atinentes à impugnação de normas e à declaração de ilegalidade por omissão encontram-se previstos na mesma Secção. Mas teria sido preferível uma sistematização que colocasse cada uma destas matérias numa secção autónoma, uma vez que se tratam de duas matérias com autonomia dogmática.
Notamos que à declaração de ilegalidade por omissão o legislador dedicou apenas um preceito, discretamente colocado no fim da Secção III. Trata-se do art.º 77.º, que se ocupa de todo o regime jurídico da omissão normativa da Administração.
A mera leitura deste preceito mostra-nos que o legislador teve a preocupação de situar o problema da omissão normativa da Administração no estrito campo das leis não exequíveis por si mesmas e que, por isso, necessitam de uma actividade posterior da Administração, visando atribuir-lhe exequibilidade. Podemos assim dizer que o legislador se refere aos regulamentos de execução, não se encontrando nas suas preocupações os regulamentos independentes.
O juiz deve, pois, verificar se a lei não é exequível por si mesma e concluindo nesse sentido, analisa, ainda, se foi ou não aprovada a competente norma que a torne exequível. Se concluir no sentido de que a norma é exequível por si mesma e não carece de execução, a questão morre aí; se, pelo contrário, concluir no sentido de que a lei não é exequível por si mesma e, apesar disso, a administração não cumpriu o seu dever constitucional de aprovar a norma que a torne exequível, impõe-se, pois, que adopte medidas no sentido de levar a Administração a cumprir a sua obrigação constitucional de executar as leis, pois estamos perante uma clara situação de ilegalidade por omissão que viola a ordem objectiva e os direitos e os interesse legítimos dos cidadãos.
Desenvolvimento:
A legitimidade para intentar a acção especial é atribuída por lei ao Ministério Público, ás entidades previstas no n.º 2 do Art.º 9.º e quem alegue um “prejuízo” directamente resultante da omissão, o que é um claro reconhecimento legal de que a omissão regulamentar pode afectar a esfera jurídica dos privados, violando os seus direitos e interesses legítimos (os titulares de posições jurídicas subjectivas). Isto, apesar de parecer contrário à dimensão tendencialmente objectiva do contencioso de normas jurídicas , este, como resulta do artigo 268.º, n.º5, da CRP, não pode deixar de possuir também uma componente subjectiva.
À primeira vista, não parece que o legislador tenha encarado com muita firmeza a forma de forçar a administração a retomar o caminho da legalidade em cumprimento do seu dever constitucional, pois estabelece no artigo 77.º, n.º 2, o seguinte: mal se entende que o juiz se limite a “convidar” a Administração a cumprir o seu dever constitucional; mal se entende também que o juiz se limite a “comunicar” à Administração, sem mais, que está em falta, como que lembrando-lhe o seu dever. E mal se entende que “convide” ou “comunique” a Administração nos termos expostos, porque a actividade judicial traduz-se no exercício independente de um poder público, cujas decisões devem ser acatadas por todas as autoridades públicas e pelos particulares e ainda pelo facto de numa grande parte das situações podermos estar perante verdadeiros direitos públicos subjectivos dos cidadãos à norma omitida, o que implica da parte da Administração o seu rigoroso cumprimento. A falta de firmeza do legislador talvez se explique pela existência em alguns sectores doutrinais de reticências em aceitar que o juiz possa condenar a Administração sem violar o princípio da separação de poderes.
Procurou-se uma via intermédia entre a solução de alcance mais limitado, de atribuir ao juiz um mero poder de declaração de omissão e a solução, de alcance mais forte, de lhe atribuir o poder de condenar a Administração à emissão do regulamento devido. Nas palavras do prof. Mário Aroso de Almeida, “ enveredou pelo caminho de instituir uma pronúncia declarativa de conteúdo impositivo, do tipo da declaração de actos devidos”.
Em relação a este último artigo, ao contrário do que é defendido pelo prof. Diogo Freitas do Amaral, o prof. Vasco Pereira da Silva, adoptando um posição próxima à de Marcello Caetano defende que se trata aqui de uma sentença de conteúdo algo equívoco, pois, o legislador, por um lado parece estabelecer que ela possui uma eficácia meramente declarativa, limitada a dar conhecimento da existência de uma ilegalidade por omissão, por outro lado, determina que ela possua também efeitos cominatórios, nomeadamente ao prever a fixação de um prazo para a adopção das normas regulamentares. Desta forma, a sentença de declaração de ilegalidade por omissão de normas regulamentares, pelos tribunais administrativos, vai mais longe do que as sentenças congéneres do Tribunal Constitucional, em matéria de fiscalização da inconstitucionalidade por omissão de actos legislativos (artigo 283.º, n.º 2, da CRP), parecendo estar mais próxima de uma sentença de condenação do que de uma sentença meramente declarativa ou de simples apreciação.
O juiz deve conceder à Administração um prazo que não pode ser inferior a seis meses, para aprovar a norma respectiva, e parece-nos uma solução de aplaudir, dada a sua flexibilidade. Na fixação desse prazo, só a análise das circunstâncias que rodearam a omissão regulamentar pode conduzir a uma boa solução. E só uma análise em concreto pode conduzir o juiz à conclusão sobre a existência de negligência e abusos ou situações objectivas de dificuldades que justificam o atraso e que a Administração se esforça por ultrapassar.
Pergunta-se: qual o sentido da previsão da fixação de um prazo razoável para o cumprimento do dever reconhecido pela sentença, se não for para o efeito de permitir que a eventual inobservância do prazo seja qualificada como um acto de desobediência em relação à sentença, em termos de habilitar o beneficiário da mesma a desencadear os mecanismos de execução adequados – isto é, a fixação de um prazo limite, com imposição de uma sanção pecuniária compulsória aos responsáveis pela persistência na omissão (artigos 164.º, n.º 4, alínea d), 168.º e 169.º).
Subsiste, no entanto, uma questão que o legislador não resolveu expressamente neste preceito: verificada que a lei não é exequível por si mesma, havendo omissão normativa ilegal e condenada a Administração para suprir essa omissão dentro de um prazo fixado pelo juiz, como resolver o problema se, findo esse prazo, a Administração não aprovar a norma omitida ? Julgamos que o juiz, se o considerar justificado, atendendo às circunstâncias concretas, pode proceder desde logo à imposição de sanções pecuniárias compulsórias, ao abrigo da previsão genérica do artigo 3.º, n.º 2, e sobretudo dos artigos 44.º e 49.º, no próprio momento em que reconheça a ilegitimidade da situação de omissão e, por isso, fixe o prazo dentro do qual a omissão deve ser suprida.
A adopção de uma sanção pecuniária compulsória constitui uma solução que já tinha sido admitida como possível na vigência do direito anterior por JOÃO CAUPERS.
Conclusão:
Podemos afirmar que o CPTA foi inovador, uma vez que, possibilitou que em acção administrativa especial, se suscitasse um pedido de apreciação da ilegalidade por omissão de normas regulamentares devidas, quer esse dever decorra, de forma directa, da referência expressa de uma concreta lei, quer decorra, de forma indirecta, de uma remissão implícita para o poder regulamentar em virtude da incompletude ou da inexequibilidade do acto legislativo em questão.
O facto de existir um preceito inovador que institui um mecanismo de controlo dessa omissão, constitui um avanço na materialização do Estado de Direito, por passar a existir um controlo judicial mais intenso da Administração que pode servir de fonte inspiração no domínio do direito comparado.
Trata-se de uma sentença de condenação que pode ser acompanhada de sanção pecuniária compulsória.
Por fim, podemos afirmar que, o regime de impugnação de normas e de declaração de ilegalidade por omissão no direito Português está mais próximo do regime de inconstitucionalidade das leis do que do regime de impugnação dos actos administrativos; este facto não deixa de levantar a questão de saber até que ponto alguns princípios do direito processual administrativo, designadamente, os poderes do juiz.
O prof. Vasco Pereira da Silva defende que está aberto o caminho para a criação de uma “acção de condenação na emissão de regulamento devido”. Defende também que nada impedia que se tivesse antes estabelecido a possibilidade de condenação da Administração na produção da norma regulamentar devida, à semelhança do que foi feito relativamente aos actos administrativos devidos. O que, reconhecida a existência de um dever de regulamentar, em nada poria em causa a separação de poderes.
Bibliografia:
Almeida, Mário Aroso de – “O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos”, 4ª Edição, Almedina, 2005.
Silva, Mário Ramos Pereira da -“A impugnação de normas e a declaração de ilegalidade por omissão no novo contencioso administrativo”, 2003.
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