quarta-feira, 25 de maio de 2011

A acção pública e a acção popular na defesa do ambiente

A natureza pública e colectiva do bem jurídico fundamental ambiente, que resulta dos artigos 9º/e), 52º/3 e 66º/2 da CRP, vai ao encontro da natureza colectiva que marca o Direito do Ambiente.
Tanto o artigo 26ºA do CPC como o artigo 9º/2 do CPTA referem o Ministério Público e os actores populares como entidades com legitimidade para  a defesa judicial de determinados interesses, já a Lei 83/95 (LAP), no artigo 2º/1 omite a referência ao Ministério Público, vindo excepcionar o regime dos arts 9º do CPTA e 26ºA do CPC) e, neste contexto a figura da iniciativa pública ser ignorada com base no artigo 53º/2 do CPA, que pre-existiu à LAP.
 A solução prevista no artigo 68º/1/c) do CPTA é passivel de fundar a intervenção do Ministério Público no plano procedimental (a titulo subsidiário) quanto a actos vinculados cuja ilegal omissão pela Administração constitua ofensa de direitos fundamentais dos particulares e de interesses públicos especialmente relevantes e demais interesses reconduziveis ao lote inscrito nos artigos 52º/3/a) da CRP, 1º/2 da LAP, e 9º/2 do CPTA.
O artigo 4º/1/l) do ETAF dá um importante passo na clarificação do que deve entender-se por relação jurídica administrativa no domínio da gestão de bens de fruição colectiva (interesses difusos). A disposição aponta para o critério da natureza do sujeito, indiciando o critério da natureza dos poderes desenvolvidos pelo sujeito. Parece, deste modo, caber aos tribunais administrativos o julgamento de questões emergentes de comportamentos que consubstanciem lesão ou ameaça de lesão de bens ambientais levadas a cabo por entidades organicamente públicas, assim como por entidades que, ainda que revistam forma privada, desempenham funções substancialmente administrativas.

Como refere o Acordão do Tribunal de Conflitos de 9 de Dezembro de 2008, “Pese a peculiar natureza da acção popular, a que subjaz a defesa de interesses públicos, ainda que exercida por um particular, não pode considerar-se que esteja em causa uma relação de natureza administrativa, nem quanto aos sujeitos”.
Esta afirmação ganha ânimo ao considerarmos a relação jurídica ambiental a partir de uma lógica de proibição sob reserva de autorização. A máxima de prevenção que norteia o Direito do Ambiente, e que o legislador constituinte não deixou de ressaltar na alinea a) do nº 2 do artigo 66º da CRP, determina a necessidade de autorização da esmagadora maioria das intervenções susceptíveis de causar impactos relevantes ao meio natural. Daí advém a natureza de juiz natural do julgador administrativo ambiental, sendo que a relação jurídica terá normalmente por base um acto autorizativo ou uma norma de um plano especial, havendo uma vinculação específica para os sujeitos, cuja presença é susceptivel de arrastar o litígio para os tribunais administrativos.
Mesmo não sendo suscitada num tribunal civel ab initio a validade do acto e apenas a ilicitude da conduta do titular da autorização, se este na contestação alegar estar a agir ao abrigo de um acto conformador da sua actividade, chamando a Administração à demanda, poderá levar o tribunal a proferir um convite à suspensão dos autos e à propositura de uma acção administrativa especial com vista à declaração de nulidade do acto, cumulada com um pedido indemnizatório deduzido contra a Administração (artigo 97º/1 do CPC). Segundo Carla Amado Gomes, revela-se mais favorável intentar acção junto dos Tribunais Administrativos, ab initio.

Na acção administrativa comum (nomeadamente, em situações reconduzíveis ao tipo de pedidos descritos no artigo 37º/2/c) do CPTA), o pressuposto do nº3 do artigo 37º do CPTA pode colocar-nos problemas de inviabilização de qualquer acção deste tipo promovida por autores populares contra privados, tendo portanto de ser adaptado. Os fins da norma traduzem um princípio de preferência pela pronúncia administrativa prévia, à semelhança do que sucede na acção administrativa especial de condenação à prática de acto devido, sendo que compatibilizando-o com os objectivos de protecção de interesses difusos se justifica esta interpretação.
Estando em causa violações de normas jusambientais perpetradas por entidades públicas, o contencioso natural das acções movidas por autores populares ou pelo MP será o administrativo, sendo esta afirmação suportada pelo artigo 4º/1/l) do ETAF.
Por sua vez, a parte final da alinea l) do no 1 do artigo 4º do ETAF, excluindo-se da jurisdicao administrativa os contenciosos das contra-ordenacoes e dos crimes ecológicos, sediados na Lei 50/2006 e nos artigos 274º, 278º, 279º e 281º do Código Penal.
Os nº 2 e 3 parecem áreas mais adequadas à inserção desta interdição. No que tange aos procedimentos contra-ordenacionais, verificamos que, se é certo que a iniciativa pode ser promovida por autores populares ou por delegados do MP junto das entidades administrativas competentes para aplicação da coima, a contestacao judicial é do interesse do lesante. Ora, estando a norma construida a pensar em entidades que promovem a defesa do ambiente (entre outros), a referência aos procedimentos contraordenacionais, ai, nao faz  grande sentido, segundo Carla Amado Gomes.
No que toca aos ilícitos criminais a perspectiva é outra, dado tratarem-se de crimes públicos cuja acusação pode ser deduzida pelo MP, através da acção pública, afastando os tribunais administrativos do julgamento destas acções. Mas o “deslocamento” e notorio, podendo dar ate a impressao de que o legislador do ETAF quis afinal reservar para a justica administrativa os litigios criminais e contra-ordenacionais alheios aos dominios dos interesses difusos.

Quando há autores populares ou agentes do MP a promover a acção de defesa do ambiente o que se almeja, em primeiro lugar, é a defesa de interesses supraindividuais. Não se trata de direitos subjectivos, mas antes de interesses de facto na fruição das qualidades de um bem ameaçado ou lesado pela actuação de um particular ou de um ente público. Esta observação é particularmente importante nas acções em que não se pede somente a cessação do comportamento lesivo ou a actuação positiva no sentido de prevenir o dano, mas já o ressarcimento de um dano ecológico (puro). Note-se que, quer nos termos da LBA (artigo 48º), quer do CC (artigo 566º/1), quer da Lei 67/2007, (artigo 3º/2), a reconstituição in natura é o modo preferencial de efectivar a responsabilidade do agente de um dano ecológico. Nos casos em que as medidas de reparação primária e complementar não sejam suficientes para repor o status quo existente antes da lesão do bem jurídico, e tendo de se partir para medidas compensatórias através de prestações pecuniárias há uma natureza publica destes montantes e a afectação ao Fundo de Intervenção Ambiental (criado pela Lei 50/2006, implementado pelo DL 150/2008).

O leque de sujeitos investido em legitimidade popular, nos termos dos artigos 2º e 3º da LAP, é constituido por: Cidadãos no gozo dos seus direitos civis e politicos, isoladamente ou em grupo, associações e fundações que tenham por função estatutária a promoção do ambiente, por Autarquias locais “em relação aos interesses de que sejam titulares residentes na área da respectiva circunscrição”.
 A “legitimidade popular” a que a CRP se reporta no artigo 52º/3 não é apenas a “acção popular correctiva” prevista no Código Administrativo de 1936/40, ainda em vigor em 1976, mas um conceito mais vasto, extensivel à tutela de interesses difusos. É condição de exercicio do direito de acção nao o ser eleitor mas o ser pessoa (interessado na qualidade de fruição de bens colectivos).
A natureza imaterial e plurilocalizada das utilidades dos bens naturais faz com que qualquer cidadão possa agir em sua defesa (por exemplo: descargas poluentes num rio do Norte do pais sindicadas por um residente em Faro).
No que toca às acções promovidas por entidades associativas e fundacionais, cumpre assinalar o pressuposto da especialidade das atribuições estatutárias, frisado pelo legislador no artigo 3º. Perante a noção amplíssima de ambiente para que somos arrastados pelo artigo 66º da CRP, “tudo é ambiente” (saúde, urbanismo, ordenamento do território, arquitectura urbana… No entanto, e ainda que assim se entenda, sempre se exigirá um segundo controlo, se no caso couber, tendo em consideração o âmbito geográfico de actuação da associação ou fundação (artigo 7º/3 da Lei 35/98).
O terceiro caso, respeitante às autarquias  (municípios e freguesias) é o que suscita mais questões, na medida em que estas entidades estão constitucional e legalmente adstritas à tarefa de protecção do ambiente, facto que lhes confere competência própria de actuação nesta sede, independentemente do recurso aos tribunais (artigos 13º/l) e 14º/h) da Lei 159/99, de 14 de Setembro). Ou seja, o exercicio da tutela declarativa, dentro da sua competência, precede e prefere, por argumentos de economia processual e pelo Princípio da separação de poderes, a via judicial.
A lei parece querer reportar-se ao fenómeno da representação sem mandato análogo ao que está subjacente ao mecanismo de tutela de interesses individuais homogéneos no artigo 15º da LAP. Simplesmente, se ai se prescinde da “vinculação territorial”, no caso das autarquias esta é intrinseca à sua natureza de entes territoriais (um principio da especialidade por natureza e nao por acto voluntário) e terá, portanto, de verificar-se para poder suportar esta representação.
Não pode fechar-se este ponto sem aludir, uma vez mais, ao Ministério Público. As razões da exclusão do leque de entidades enunciadas no artigo 2º/1 podem estar relacionadas com o facto de a LAP ser também um regime de alargamento da legitimidade procedimental, realidade da qual o MP estará, em regra, arredado. No entanto, nos locais especificamente contenciosos, o MP está presente enquanto detentor de poder de acção pública. A sua actuação, no que tange a interesses difusos, se traduz numa intervenção duplamente qualificada: agindo em defesa da legalidade objectiva e da qualidade material de fruição do bem natural ameaçado ou lesado.
Além da iniciativa processual, o MP tem ainda legitimidade substitutiva (de actores populares) em caso de desistência (nos termos do artigo 16º/3 da LAP).
Olhando para os artigos 73º/3 e 130º/3 do CPTA, apercebemo-nos da posição privilegiada do MP nesta sede: só ele pode pedir declaração de nulidade com efeitos erga omnes sem esperar pela desaplicação em três casos concretos (tendo o dever de requerer tal declaracao uma vez registados estes), e so ele pode requerer a suspensão jurisdicional de eficácia de normas (imediatamente exequiveis) com efeitos erga omnes independentemente da alegação da recusa de aplicação da norma em três casos anteriores.

A legitimidade popular é uma extensão da legitimidade processual, sendo um
pressuposto processual, que neste caso dispensa a prova do interesse directo e pessoal. Não estamos perante um meio processual, mas sim perante um conjunto de especialidades processuais que se enxertam nos meios processuais concretamente utilizados pelos autores populares, na jurisdição administrativa ou na civel (artigo 12º da LAP). Já o leque de especialidades que a legitimidade popular acarreta não se pode considerar tão evidente.
A LAP não regula somente a legitimidade popular, mas também o instituto da acção de grupo (os interesses individuais homogéneos). Esta bipartição torna-se mais evidente quando atentamos aos artigos 14º, 15º, 19º e 22º/2, 3 e 4. Nestas disposições, o legislador teve por objectivo resolver o problema de representacao atipica em casos de interesses individualizados pertencentes a pessoas afectadas por um risco de origem idêntica. Os interesses não são relativos a bens individualmente inapropriaveis, mas a bens pessoais (integridade fisica, património).
O artigo 48º do CPTA constitui uma forma de agilização processual — pelo menos para o(s) processo(s) seleccionado(s), sendo especialmente útil no âmbito da tutela de interesses individuais homogéneos. Na ausÊncia de uma iniciativa processual baseada numa representacao sem mandato, a multiplicacao de accoes cuja resolucao implica a aplicacao das mesmas normas ou a elucidacao da mesma questao de direito, e susceptivel de uma reductio ad unum atraves do mecanismo de seleccao do artigo 48º. Tal como o artigo 17º da LAP veicula a auto-exclusão de sujeitos que desejem prosseguir uma diferente estratégia processual e, em consequência, ficar imunes aos efeitos do caso julgado, também o CPTA oferece aos vários autores, quer a possibilidade de requerer a extensão de efeitos da decisao ao seu caso artigo 48º/5/b), quer a prossecucao autonoma da accao artigo 48.o/5/c).
O caso julgado em acções promovidas por autores populares para tutela daqueles interesses produz, forçosamente, efeitos erga omnes— em virtude da natureza dos bens que sustentam os interesses (de facto) de fruição colectiva.
E a pessoalidade (embora “colectivizada” na sua semelhanca) que define este tipo de
interesses. Assim se explica que um autor esteja em juizo por todos aqueles que se nao
sintam indevidamente representados no objectivo das suas pretensões e, por isso, se autoexcluam(artigos 14º e 15º), bem como assim se compreende o modo de citacao
circunstancial ou geograficamente orientada (artigo 15o/2 e 3)32. Do mesmo passo se
ilumina a norma constante no artigo 19o, sobre eficacia erga omnes do caso julgado
(ressalvados os sujeitos que se auto-excluiram), e se confere inteligibilidade aos nº 2, 3 e 4 do artigo 22º, respeitantes à indemnização.
 As indemnizações pecuniárias reclamadas por autores individuais são legitimamente devidas em virtude de lesões particulares, ao passo que as indemnizações pecuniárias por dano ecológico reclamadas por autores populares, pessoais ou institucionais, pertencem à comunidade.
 A criação do FIA veio resolver o equívoco aberto pelo artigo 22º/2, ou pela LAP no seu todo, ao não diferenciar interesses difusos e interesses individuais homogéneos, determinando o destino de quantias que se não reconduzam a medidas de reparação primária e complementar do bem lesado por forma a não promover o enriquecimento do autor popular à custa alheia (da colectividade). O Anexo V do DL 147/2008, ao proibir a atribuição de quantias pecuniárias a sujeitos individuais, que há-de ser a ultima ratio, na medida em que se prefere a reconstituição natural, acentua a natureza pública do dano, não inviabilizando, todavia, a configuração de um “dano moral colectivo” da comunidade que veja afectada a qualidade ambiental que a envolve. Este dano tem natureza mista: a sua origem e o sentimento de perda de pessoas individuais por afectacao do nivel de fruição de um recurso de que habitualmente  usufruiam, mas a sua tradução pecuniária deve ser canalizada para fins de promoção da qualidade do ambiente comunitário.
Verdadeiras especialidades das acções promovidas por autores populares (bem como das interpostas por portadores de interesses individuais homogéneos) constam dos artigos 13º, 17º, 18º e 20º da LAP. O artigo 13º visa responsabilizar os autores populares, desincentivando-os da propositura de acções com fins puramente dilatórios, sobretudo porque o acesso à justiça é facilitado pelo regime especial de preparos e custas previsto no artigo 20º.
Logo, o juiz vê acrescidos os seus poderes de saneamento liminar em acções promovidas por autores populares mas não quando a acção é apresentada pelo MP.
O artigo 17º constitui um sinal inequívoco da natureza pública deste tipo de processos. O juiz não fica circunscrito a um papel passivo, próprio de quem está adstrito ao principio da imparcialidade, mas antes vê reconhecida a faculdade de promover diligências que permitam iluminar as circunstâncias do caso e obter a melhor fundamentação possivel da decisão. O juiz está vinculado ao pedido mas não aos elementos de prova carreados, que podem ser acrescidos na sequência de iniciativa sua.
O artigo 18º visa salvaguardar o efeito útil de uma decisão de provimento do pedido do autor popular, atendendo à natureza frágil do objecto subjacente ao litigio e à possibilidade de provocação de danos irreparáveis ou de dificil reparação.
Atendendo à natureza dos bens em jogo e à magnitude que a sua salvaguarda reveste para a comunidade em geral, e para o ecossistema em particular, não deveria ser reconhecido o direito de decretar medidas inibitorias da actuacao lesiva ao juiz? e presumivelmente ilicita ─ ainda que tal pedido nao fosse formulado (na petição inicial) pelos autores populares. Note-se que estariamos aqui perante uma verdadeira excepção ao principio do pedido, uma vez que não se trataria de conceder um diferente efeito a um impulso processual, mas substituir-se ao impulso processual (cautelar). A natureza do bem pode ate justificá-lo, mas o legislador teria que o afirmar expressamente e sempre se deveriam implementar mecanismos de recurso urgente a favor do réu, para assegurar um minimo de contraditório, essencial à salvaguarda do principio do processo equitativo.
O artigo 20º pretende constituir um incentivo à promoção de accões por autores populares, dispensando-os do pagamento de preparos e isentando-os do pagamento de custas em caso de procedência da acção, ainda que parcial. Em face de
decaimento total, o montante a liquidar e ainda assim simbólico (“entre um décimo e
metade das custas que normalmente seriam devidas”, ponderando-se a situação dos
requerentes e a razao formal ou substancial da improcedencia do pedido).
Bibliografia:

Miguel TEIXEIRA DE SOUSA, Legitimidade processual e acção popular no Direito do
Ambiente, in Direito do Ambiente, INA, 1994, pp. 409 segs;

 Jose LEBRE DE FREITAS, A acção popular ao serviço do ambiente, in Ab Uno Ad Omnes, 75 anos da Coimbra Editora, Coimbra, 1998, pp.797 segs;

Antonio ALMEIDA, A acção popular e a lesão dos bens ambientais, in Lusiada, 2002/1-2, pp. 367 segs.

 Jose Eduardo FIGUEIREDO DIAS, Os efeitos da sentença na Lei de Acção Popular, in CEDOUA, 1999/1, pp. 47 segs.

22 Carla AMADO GOMES, O Provedor de Justiça e a tutela de interesses difusos, in Textos
dispersos…, II, cit., pp. 235 segs, 248 segs.

47 Cfr. Carla AMADO GOMES, Direito Administrativo do Ambiente, in Tratado de Direito
Administrativo Especial, I, coord. de Paulo Otero e Pedro Goncalves, Coimbra, 2009, pp. 159 segs, 264-265.

Sem comentários:

Enviar um comentário