Antes da grande reforma do Contencioso Administrativo, a necessidade do recurso hierárquico constituía um pressuposto processual para efeitos de impugnabilidade contenciosa de um acto administrativo. Exigia-se, assim, a definitividade vertical do acto administrativo enquanto requisito para que o acto pudesse ser impugnado judicialmente.
Até 1989, conferia-se aos particulares o direito de recurso contencioso contra actos administrativos definitivos e executórios, o que levou à tradicional dicotomia entre recursos hierárquicos necessários e recursos hierárquicos facultativos. Com a revisão constitucional de 1989, alterou-se o disposto no nº 4 do art. 268º, que deixou de fazer referência ao critério da definitividade, passando a dispor que são recorríveis “quaisquer actos administrativos lesivos de direitos ou interesses legalmente protegidos dos particulares”, adoptando assim o critério da lesividade do acto, o que suscitou dúvidas na doutrina quanto à constitucionalidade do recurso hierárquico necessário.
Neste âmbito, o Professor Vasco Pereira da Silva considera que, com aquela revisão constitucional, mesmo antes da reforma do CPTA, deixou de se exigir a definitividade vertical do acto como pressuposto de recurso ao meio contencioso, bastando agora a existência da lesividade, e, portanto, todo e qualquer recurso hierárquico necessário estaria ferido de inconstitucionalidade, na medida em que essa imposição equivale a uma negação do direito fundamental de acesso à justiça, violando assim o princípio da plenitude da tutela dos direitos dos particulares. Refere ainda o Professor que aquela exigência viola igualmente o princípio da desconcentração administrativa (art.267.º/2 CRP) que implica a impugnabilidade dos actos dos subalternos, sempre que estes sejam lesivos, tal como o princípio da efectividade da tutela nos termos do art. 268º/4 CRP por força do efeito preclusivo da impugnabilidade da decisão administrativa no caso de não ter havido interposição de recurso hierárquico, no prazo de 30 dias. Entende, por fim, que tal exigência viola ainda o princípio da separação entre a Administração e a Justiça (arts.114º, 205º e ss. e 266º e ss. CRP), por fazer precludir o direito de acesso ao tribunal em resultado da não utilização de uma garantia administrativa.
Outra doutrina, como é o caso dos Professores Feitas do Amaral e Vieira de Andrade, entende que o legislador ordinário continuaria a estar livre de exigir a definitividade do acto, mediante legislação avulsa e, desta forma, a dualidade de recurso necessário e facultativo continua a fazer sentido. Para este sector doutrinário a exigência de impugnação administrativa era meramente ordenadora e não constituía um ataque aos direitos, liberdades e garantias dos particulares, nomeadamente o acesso ao tribunal. Por fim, o nº4 do art. 268º não impõe a impugnabilidade imediata, apenas determinando que a garantia contenciosa não pode ser negada quando exista um acto administrativo.
Actualmente, o CPTA não exige que os actos administrativos sejam objecto de prévia impugnação administrativa, para que possam ser objecto de impugnação contenciosa, decorrendo dos arts. 51 º e 59.º, nºs 4 e 5 do CPTA que a utilização de vias de impugnação administrativa não é necessária para aceder à via contenciosa.
É opinião maioritária na doutrina que a Reforma do CPTA veio estabelecer, como regra geral, o recurso hierárquico alternativo, pois parece resultar do art. 51º/1 CPTA que o critério de impugnabilidade contenciosa dos actos será, apenas, a sua lesividade. Além disso, o art. 59º/4 CPTA estabelece a suspensão dos prazos para impugnação contenciosa quando seja intentado recurso administrativo e o art. 59º/5 prevê especificamente a hipótese de recorrer aos tribunais administrativos mesmo durante a pendência de impugnação graciosa.
Destas alterações o Professor Vasco Pereira da Silva retira que as disposições que imponham o recurso hierárquico necessário, além de inconstitucionais, terão sido revogadas com estas alterações. Assim sendo, para este Professor, deixou de poder ser exigido o recurso hierárquico necessário em todos dos casos.
Todavia, alguma doutrina contesta esta opinião, como é o caso do Professor Mário Aroso de Almeida, entendendo que esta apenas será a regra geral do Contencioso Administrativo, mantendo-se, assim, em vigor as disposições avulsas que contenham aquela imposição, pois que o novo regime não implicaria a revogação das “múltiplas determinações legais avulsas que instituem impugnações administrativas necessárias, disposições que só poderiam desaparecer mediante disposição expressa que determinasse que todas elas se [considerassem] extintas”, pois o CPTA não tem o alcance de revogar as múltiplas determinações legais avulsas que instituem impugnações administrativas necessárias.
Assim, na opinião deste Professor, as decisões administrativas continuam a estar sujeitas a impugnação administrativa necessária nos casos em que isso esteja expressamente previsto na lei, sendo considerada uma opção consciente e deliberada por parte do legislador.
Rejeita, assim, a tese proclamada pelo Professor Vasco Pereira da Silva, argumentando que não cabe à Constituição estabelecer os pressupostos de que possa depender a impugnação de actos administrativos. Além disso, uma vez intentada a impugnação administrativa necessária, a via de reacção contenciosa a seguir, no caso de ela não surtir efeitos, será sempre a via impugnatória, sendo a utilização da impugnação administrativa necessária um mero requisito da observância do qual depende a abertura da via impugnatória.
Também o Professor Vieira de Andrade considera que não existe inconstitucionalidade nos casos de impugnação administrativa obrigatória, pois entende que o art.268º/4 apenas obriga a que não se exclua, em caso algum, o acesso a meios contenciosos em caso de lesão originada por acto administrativo. Assim sendo, aquele preceito não parece excluir este condicionamento ao acesso aos tribunais na medida em que esse acesso não é negado, acabando por ser sempre possível. Refere ainda o Professor que o art.18º/2 CRP admite limitações a direitos fundamentais, nos termos ali previstos. Por fim, afirma que os casos de necessidade de interposição de recurso hierárquico se justificariam à luz do princípio da unidade da acção administrativa (art.267º/2 e 199º, al.d) CRP) e da economia processual no contencioso administrativo.
Cumpre tomar posição. De facto, creio que não se pode afirmar a inconstitucionalidade do recurso hierárquico necessário. Ao olharmos para o art. 268.º/4 CRP vemos que se garante a tutela jurisdicional efectiva dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares. Ora, ao exigir-se que o particular recorra hierarquicamente do acto lesivo, enquanto pressuposto da impugnação contenciosa, não se está a pôr em causa aquela tutela efectiva, na medida em que o particular pode sempre impugnar contenciosamente aquele acto posteriormente. Não existe, assim, uma restrição ao acesso aos tribunais. Além disso, passados 20 anos desde a referida revisão constitucional, o Tribunal Constitucional em nenhuma ocasião proferiu a sua inconstitucionalidade, antes se pronunciando pela não inconstitucionalidade do recurso hierárquico necessário, como é exemplo o Ac. TC nº 499/96.
Quanto à subsistência do recurso hierárquico necessário em disposições avulsas, creio que não podemos solucionar o problema apenas pelas regras gerais da revogação, como têm feito os tribunais. A tendência jurisprudencial tem sido a de afirmar que, tratando-se de regimes especiais, há lugar à aplicação do disposto no nº 3 do art. 7.º do Código Civil, pelo que, o facto de o regime geral ter sido alterado, não dá lugar à revogação tácita das disposições especiais, na medida em que é necessária uma revogação expressa. Deste modo, os tribunais têm defendido que tais disposições mantêm-se em vigor e, assim sendo, continua a ser exigível o recurso hierárquico necessário nesses casos.
Não seguindo a via da inconstitucionalidade, nem a da revogação, temos que encontrar outra solução. Neste âmbito, concordo com a posição do Professor Vasco Pereira da Silva ao defender a caducidade dessas normas por falta de objecto. Ora, antes da reforma do CPTA, para efeitos de impugnação contenciosa era adoptado o critério do acto administrativo definitivo e executório, pelo que, a necessidade do recurso hierárquico justificava-se precisamente para conferir aquela definitividade vertical ao acto administrativo. Adoptando, actualmente o art. 51º/1 CPTA o critério da eficácia externa, já não se justifica aquela necessidade, deixando o recurso hierárquico de constituir um pressuposto processual. Assim sendo, podemos questionar para que serve então a exigência de recurso hierárquico necessário nas tais disposições avulsas, sendo que a conclusão a que chegamos é que já não tem qualquer utilidade, pelo que caducaram por falta de objecto.
Bibliografia:
MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Manual de Processo Administrativo, Coimbra, 2010, pp. 302 a 308
MÁRIO AROSO DE ALMEIDA E CARLOS ESTEVES CADILHA, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativo, Almedina, 3.ª edição, 2010, pp.348.
VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa (Lições), 11.ª edição, Coimbra, 2011, pp. 221 a 222.
VASCO PEREIRA DA SILVA em, por exemplo, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2.ª edição, Coimbra, 2009, pp. 348 e 349
Nair Cordas
Nº 17473, Subturma 3
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