quarta-feira, 20 de abril de 2011

Comentário crítico

«(…) A reforma estabeleceu um modelo subjectivista, consagrando o processo administrativo como um processo de partes e alargando os poderes de cognição do juiz perante a Administração. São no entanto visíveis os momentos objectivistas do regime, seja no que respeita à legitimidade activa (…), seja quanto à previsão de litígios inter-administrativos (…), seja nos significativos poderes que continuam a reconhecer-se ao Ministério Público como auxiliar de justiça (…), seja ainda em outros aspectos específicos, como o conhecimento oficioso pelo juiz das ilegalidades do acto administrativo impugnado.» (Viera de Andrade)

A questão da natureza do contencioso administrativo de anulação remonta aos primórdios do controlo da actividade administrativa pelo Conselho de Estado e a sua distinção baseia-se no carácter da decisão tomada pelo juiz.
A opção por um sistema de controlo administrativo do tipo objectivo ou subjectivo não pode deixar de ter consequências no que concerne ao modo de entender os diversos institutos de contencioso. Nas palavras de KREBBS “ a protecção jurídica subjectiva e o controlo jurídico objectivo designam funções diferenciadas de um controlo jurídico da actividade estadual”

Características e linhas gerais:

1) Função do contencioso
-Contencioso objectivo: tem como fim a garantia da legalidade e da prossecução do interesse público. O recurso de anulação não serve para a defesa dos direitos subjectivos dos particulares, é antes uma forma de auto-controlo da própria Administração, na qual os particulares são chamados a colaborar
-Contencioso subjectivista: o objectivo principal é a tutela dos direitos subjectivos dos particulares nas suas relações com as entidades administrativas (v. arts. 268.º nº3 e 20.º nº2 da CRP; art. 3.º E.T.A.F) (e reflexamente também a tutela da legalidade)


2) Entidade controladora
- Contencioso objectivo: Não exige um juiz pessoal e materialmente independente. Tendo uma função de defesa da legalidade, o contencioso administrativo enxerta-se na actividade administrativa de que é a continuação (“julgar a administração é ainda administrar”)
A entidade controladora tanto pode ser um órgão da Administração activa como uma entidade administrativa jurisdicionalizada. A ligação à Administração da entidade fiscalizadora é considerada desejável, como forma de assegurar uma maior eficácia das suas decisões e também porque se parte do princípio de que o juiz não pode dar ordens à Administração.
- Contencioso subjectivista: implica que o controlo da actividade administrativa seja feito por uma entidade jurisdicional independente do poder administrativo.
A entidade controladora é chamada a decidir um litígio entre um particular e a Administração, originado por um acto administrativo ilegal que lesou um direito subjectivo de um particular. Recorre-se a um juiz independente e imparcial, uma vez que um sistema de contencioso subjectivo implica a diferenciação material, formal e orgânica entre Administração e Justiça, exige que os tribunais administrativos sejam verdadeiros tribunais, integrados no poder judicial. (v. art. 212.º nº2 CRP; arts. 1.º e ss E.T.A.F)


3) Posição do particular
-Contencioso objectivo: o particular não é considerado uma parte substantiva. O indivíduo não é visto como defendendo no processo uma situação jurídica individual, mas como um colaborador da Administração na realização do interesse público. Não é o processo de anulação que se encontra ao serviço do particular para a defesa dos seus direitos, mas o particular que está ao serviço do processo, a fim de cooperar na realização da legalidade administrativa.
-Contencioso subjectivista: tem como objectivo principal a defesa dos direitos dos indivíduos nas suas relações com a Administração Pública. Os cidadãos são considerados como titulares de direitos subjectivos nas relações jurídicas administrativas e é-lhes atribuída a possibilidade de ir a tribunal defender esses direitos. (art. 266.º nº1; art. 268.º nº 3 CRP; art. 3.º E.T.A.F)
É o recurso de anulação que existe para defesa das posições jurídicas substantivas dos particulares e não os indivíduos que estão ao serviço da Administração no processo.


4) Posição da Administração
- Contencioso objectivo: A posição da Administração não é de parte mas de autoridade recorrida.
A Administração, como autoridade que pratica um acto que definiu autoritariamente a situação dos particulares, é chamada a colaborar com uma autoridade superior, com poderes de revisão dos seus actos, a fim de que esta verifique a validade ou invalidade destes.
O tribunal e a Administração encontram-se imanados no seu objectivo comum de servir a actividade administrativa. A Administração não é parte em sentido material, porque o seu interesse, tal como o do juiz, é o da defesa da legalidade e do interesse público.
- Contencioso subjectivo: Tanto o particular como a Administração são partes que, perante um juiz, defendem as suas posições; num caso, a afirmação da lesão de um direito, no outro, a defesa de uma determinada interpretação da legalidade e do interesse público, que foi concretizada através de um acto administrativo.


5) Objecto do processo
- Contencioso objectivo: É o exercício do poder administrativo que constitui o objecto do processo. O pedido no recurso é o da anulação de um acto (ou a sua declaração de nulidade ou inexistência). O que está em causa no processo é, sem mais, a questão da validade ou invalidade de um acto administrativo, pelo que ele deve ser fiscalizado à luz de todas as normas administrativas aplicáveis.
-Contencioso subjectivo: O objecto do processo é o direito substantivo afirmado pelo particular como lesado por um acto administrativo.
O pedido de anulação de um acto (pedido imediato) é, assim, visto como um meio de tutela de um direito subjectivo lesado do indivíduo (pedido mediato).


6) Poderes do juiz
-Contencioso objectivo: Os poderes do juiz limitam-se à anulação (ou declaração de nulidade ou de inexistência) de um acto administrativo. Não pode o juiz condenar a Administração nem dirigir-lhe ordens de qualquer espécie, pois o que está em causa não é um comportamento da Administração mas um acto administrativo apreciado independentemente do seu autor.
- Contencioso subjectivista: Aqui o que está em causa não é apenas, o acto administrativo, mas a relação existente entre o particular e a Administração, apreciada a propósito de um acto que o particular alega ter lesado o seu direito subjectivo. O que a sentença vai decidir é da existência ou não de um direito subjectivo lesado do demandante.
Esse reconhecimento de um direito do particular tanto pode dar origem a uma sentença de simples apreciação, como uma sentença de anulação ou de condenação, porém os efeitos da decisão jurisdicional não se esgotam na anulação do acto, mas condicionam a actividade futura da Administração e obrigam à satisfação do direito do particular reconhecido pelo juiz.


7) O caso julgado
-Contencioso objectivo: os limites materiais do caso julgado incidem sobre tudo aquilo que tiver a ser apreciado no processo. O caso julgado forma-se sobre a questão da validade ou invalidade de um acto, determinando de forma imodificável, o seu afastamento da ordem jurídica ou a sua confirmação (eficácia erga omnes).
O desaparecimento de um acto administrativo deve valer face a todos os indivíduos e não, apenas, relativamente àqueles que interpuseram o recurso.
-Contencioso subjectivista: Neste sistema, sendo a causa do pedir a invalidade do acto na sua relação com os direitos dos particulares, os limites materiais do caso julgado apenas abrangem as questões acerca da invalidade do acto administrativo suscitadas pelas partes e não pode produzir efeitos em relação àqueles que não participaram. (art. 20.º nº2 CRP)


8) A execução de sentenças
-Contencioso objectivo: A execução de sentenças é da responsabilidade da Administração, que as deve cumprir voluntariamente, sem que haja meio de lhe impor uma execução coactiva.
-Contencioso subjectivista: A Administração tem o dever legal de cumprir o que foi determinado pelo juiz e, em caso de recusa, o particular pode servir-se de um processo jurisdicionalizado de execução de sentenças. Através de um processo executivo especial pode a Administração ser condenada à prática de determinadas condutas para o cumprimento das sentenças, bem como podem os órgãos ou agentes administrativos faltosos vir a ser alvo de responsabilidade penal pelo seu incumprimento. (v. arts. 933.º ss C.P.C)


9) Âmbito do controlo
-Contencioso objectivo: existe um amplo controlo de todos os critérios jurídicos de decisão, pois o fundamento do controlo é a defesa da legalidade.
-Contencioso subjectivo: Âmbito de controlo forçosamente mais limitado. Só são controladas as actuações administrativas, na medida em que forem lesivas dos direitos dos particulares.




Situação actual:

Desde 1974 que se verifica o reforço da função subjectivista do Contencioso Administrativo (v. supra)., sem prejuízo da conservação de uma paralela função objectivista.

O art. 268º. CRP consagra um sistema de contencioso administrativo do tipo subjectivo, superando-se assim os limites do contencioso de mera legalidade, para se avançar na protecção dos direitos subjectivos e interesses legítimos dos particulares.
Entende a doutrina que se deve proceder à divisão do preceito em duas partes. Numa primeira parte prevê-se o recurso de anulação, concebido como um direito fundamental (art. 17º. CRP).
Na segunda parte prevê-se ainda a possibilidade de este meio jurisdicional ser complementado por outros (v. L.E.P.T.A, arts. 90º. e ss.)

O reforço da função subjectivista a partir de 1974 teve por centro dinamizador a garantia da tutela jurisdicional efectiva, tal como afirmada na Constituição. Nos nºs 4 e 5 do art.268.º, os direitos e interesses legalmente protegidos dos sujeitos de direito em relação jurídica com a Administração constituem objecto de uma garantia de tutela jurisdicional dotada de efectividade, a qual deverá estender-se a todos os litígios que os envolvam, sem qualquer exclusão quanto às fontes destas situações subjectivas, às causas do diferendo ou aos tipos de pronúncia jurisdicional adequada à prevenção ou eliminação da ofensa.
No nº 5 do art. 20.º a Constituição perspectiva um exercício da função jurisdicional administrativa primariamente dirigido à protecção de situações jurídicas subjectivas em parceiros relacionais da Administração. Este posicionamento da Constituição não equivale à imposição de um “sistema subjectivista puro”, baseado na tutela directa de situações jurídicas subjectivadas, mas embarga um Contencioso Administrativo primariamente centrado numa meta de reposição da legalidade objectiva, isto é, numa finalidade primária de remoção do ordenamento de todos aqueles comandos administrativos, genéricos ou concretos, que se mostrem incompatíveis com as normas jurídicas de eficácia superior.

A par da função subjectivista, o Contencioso Administrativo manteve uma paralela função objectivista, ou seja, uma função de asseguramento da congruência jurídico-administrativo segundo nexos de validação dos actos de exercício do poder público por parte da Administração.
Essa finalidade objectivista decorre desde logo de um imperativo constitucional: nos termos do art. 202.º nº2 da C.R.P, na administração da justiça incumbe aos tribunais não apenas a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos e dirimir conflitos de interesses públicos e privados, mas também, reprimir a violação da legalidade democrática.
No nosso sistema constitucional, a legalidade desempenha ela própria uma função garantística. Mas, a par de uma ideia de legalidade subjectiva, assente no imperativo de protecção da esfera individual através da necessária prévia definição das condutas administrativas de que depende o destino pessoal dos cidadãos, há também uma legalidade objectiva. Esta última sublinha a necessidade da existência e da observância de um quadro normativo da acção administrativa como uma determinante sistemática, isto é, independentemente de saber se tais actuações ofendem direitos ou interesses legalmente protegidos dos particulares.
No Estado de Direito, o primeiro e óbvio fundamento da legalidade objectivista é o princípio democrático, a cuja luz a legalidade é assumida como instrumento de direcção da administração por parte de órgãos legislativos directa ou indirectamente legitimados pelo sufrágio popular. Mas também o princípio constitucional da prossecução do interesse público depende da definição geral e abstracta das competências, ou seja, da previsão normativa de todos os actos administrativos.
Sob pena de ausência de efectividade, a legalidade objectiva não pode ver-se confinada a norma de conduta administrativa: tem de se desdobrar também na função de factor de mensurabilidade, que deve caber em última análise aos tribunais. (art. 202.º nº2; 203.º e 205.º nºs 2 e 3 C.R.P)
A própria Constituição relaciona com a vertente objectivista do exercício da função jurisdicional do Estado uma das atribuições do Ministério Público, ou seja, a defesa da legalidade democrática (art. 219.º nº1 CRP). O art. 9.º nº2 e 55.º nº2 do C.P.T.A repete a afirmação da competência do M.P para defender a legalidade e promover “ a realização do interesse público”.
O Art.55º/1 – a)CPTA, em sede de legitimidade na acção administrativa especial por impugnação de actos administrativos, é encarada como uma norma do tal compromisso entre modelos, uma vez que elenca como critério de aferição daquele pressuposto processual a lesão pelo acto nos direitos ou interesses legalmente protegidos do particular, o que aponta para a subjectivização mencionada anteriormente. No entanto fá-lo apenas como critério exemplar, uma vez que a legitimidade se encontra preenchida porquanto se verifiquem o interesse directo e pessoal, elementos que se afastam já da necessidade de uma posição subjectiva normativamente protegida, mas que apenas exigem que o particular possa retirar directamente da impugnação do acto um benefício específico para a sua esfera jurídica, mesmo não invocando a titularidade de uma posição jurídica subjectiva lesada.
Outra norma onde se afere o compromisso identificado anteriormente é o Art.51º/1CPTA onde o pressuposto de impugnabilidade do acto é pensável quer para aqueles actos que lesem direitos ou interesses legalmente protegidos, enquanto critério mais uma vez exemplificativo consonante com o Art.268º/4CRP, mas mais genericamente para todos os actos com eficácia externa. Daqui se depreende que os actos susceptíveis de impugnação são aqueles que ofendam pura e simplesmente a legalidade objectiva e que podem ser impugnados pelas entidades referidas no Art.55º/1- b), c) e d) e e).
Saindo dos pressupostos processuais encontram-se mais normas que apontam para momentos de objectividade no nosso sistema processual. Uma delas é o Art.85º/2CPTA em pura sede de tramitação da acção especial administrativa, que permite a intervenção do Ministério Público para ”pronunciar-se sobre o mérito da causa, em defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos, de interesses públicos especialmente relevantes ou de algum dos valores ou bens referidos no nº2 do Art.9º”. Ora aqui se encontra patente a preocupação que o nosso legislador mantém na tutela do interesse público e de posições que podem ou não coincidir com aquelas que são requeridas pelos particulares.
E por fim, o Art.45ºCPTA introduz-nos a questão da modificação objectiva da instância que pode, se o juiz considerar que há um prejuízo excepcional para o interesse público decorrente do deferimento da pretensão do autor, conduzir a uma sentença de improcedência do pedido, sendo substituída por uma solução consertada entre as partes. Ora mais uma vez se denota aqui a prevalência do interesse público sobre a tutela dos particulares, característica do modelo objectivista.



VASCO PEREIRA DA SILVA, Para um contencioso administrativo dos particulares, Almedina, 1989, Lisboa
SÉRVULO CORREIA, Direito do Contencioso Administrativo I, Lex, 2005, Lisboa









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